- Olha a ficha!
- Anh?
- Caiu.
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Veredicto
Culpa é um sentimento cristão. Nunca procurei ler algum estudo filosófico ou antropológico sobre a culpa, então posso estar falando alguma besteira. Assim como filósofos e antropólogos também falam. Não importa.
Pra mim, o cristianismo é uma religião que baseia sua doutrina na culpa, ainda que inconsciente. Um grande salvador morreu por causa dos nossos pecados, logo somos sempre grandes culpados pela morte de Deus. E a libertação está na compaixão, na bondade, na caridade, no velho amor ao próximo. Então não quero saber agora se algum ser humano na época A. C. sentiu culpa por qualquer motivo, mas essa que sentimos hoje, na nossa sociedade, é um sentimento essencialmente cristão acatado como um padrão de vida. Ainda que pelos não-religiosos.
É assim que essa mesquinharia ridícula nos torna altamente merecedores de toda piedade e ao mesmo tempo de toda punição do mundo. Porque enfiam na nossa cabeça que nossos problemas não são nada, absolutamente nada, perto daqueles que sofrem de mazelas maiores. O círculo vicioso continua girando e temos que sentir culpa até mesmo porque sofremos. Como somos egoístas, ingratos, arrogantes, insensíveis! E somos eu, você, sua vizinha, seu tio, seu marido, todos, todos egoístas porque lamentamos a vida enquanto tanta gente tem motivos maiores pra sofrer. E a saída? A saída é sempre a compaixão. A maldita compaixão. Somos todos sofredores obrigados a ter humildade de admitir que nosso sofrimento não é nada e a carregar compaixão de um mundo inteiro que sofre muito mais do que nós.
E a maldade pior, a grande crueldade herdada pelo cristianismo, de acordo com a minha opinião, é essa história de tentar confundir culpa com consciência. A eterna obrigação de amar como Jesus ou qualquer outro mártir-deus amou, de retribuir o que ganhamos, mesmo quando foi "dado sem esperar nada em troca", mesmo quando isso transcende nossos limites que, como reles humanos, temos todo direito de ter. Agimos guiados pela sensação de que há sempre um juiz observando se nossos atos vão ser considerados certos ou errados. E esse juiz pode ser seu pai, seus vizinhos, sua família, seus amigos, seus inimigos, seus empregados, seu anjo da guarda, seu jesus cristo, sua vaidade, sua culpa. E, quando questionamos nosso juiz, vivemos a angústia de termos que decidir por conta própria o que é mais sensato a fazer. Juiz imbecil que não sabe de nada, eternamente confundido com bem mais supremo que uma pessoa pode ter: a consciência.
Então nesse caso o banco dos réus é um lugar até confortável. Admite-se no confessionário o que se fez e o que se sente de errado, muito errado, paga-se uma penitência, uma fiança, cumpre-se uma pena e segue a vida prometendo não errar mais. Quando se consegue o perdão da vítima então, nossa que maravilha! A grande libertação da culpa, o caminho para evolução.
E o direito de sofrer? O direito de ser fraco, mesquinho, egoísta, o direito de fazer sofrer? Sofrer por uma besteira mesmo, porque a unha quebrou, porque o amigo não disse tchau, porque o sol está muito quente. Sofrer genuinamente, porque existe dor, porque existe motivo, não por uma simples necessidade de atenção. Sofrer porque é humano. E o direito de sofrer sem precisar sentar no banco da vítima? E o direito de querer fazer a coisa certa, a coisa que EU achei certa, que era certa pra mim, naquele momento, porque a consciência, não a culpa, mandou? E o direito de ter dificuldades de lidar com isso depois? Eu não tenho?
Porque aí vem a parte mais difícil de qualquer decisão: o depois. Aprender a desligar o botão da culpa e da compaixão, se aceitar como um humano e entender que as decisões tomadas pela PRÓPRIA consciência trazem conseqüências que não são fáceis de agüentar. Aprender a fazer isso e não voltar atrás. Até porque, na maioria das vezes, quando se volta atrás, só sobra a culpa mesmo. Essa maldita.
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Vai com os deuses, neném.