A vizinha morreu. Menina bonita, reservada e mais ou menos da minha idade. Foi atropelada, passou uma semana na UTI e morreu ontem.
Daí vocês me perguntam: como eu sei disso? To sozinha em casa e quase não interajo com vizinhos, só o amistoso "bom dia-boa tarde-boa noite" quando cruzo com um ou outro na portaria. Tampouco interagia com a menina que morreu, já que ela era mais reservada ainda. Pra falar a verdade, não me lembro de sequer ter tido a oportunidade de dar "bom dia" pra ela nem pra mãe dela (igualmente discreta) nos dez anos que moro nesse condomínio. Mas quando a mocinha sofreu o acidente vieram três (eu disse TRÊS) vizinhos em momentos diferentes aqui em casa com a missão de me dar a notícia. "Menina, a Rafaela foi atropelada. Tá muito mal no hospital... Tá na UTI. " Que resposta esperavam além de um constrangedor "Huuum... coitada né?". Não necessariamente porque eu não estivesse me importando com o sofrimento dela, mas simplesmente porque eu não tinha ABSOLUTAMENTE NADA o que dizer! Tinha? Aí dia desses um quarto vizinho me interceptou no caminho entre a portaria e a minha casa pra me contar detalhadamente o quadro da menina, como tinha sido o acidente, em que hospital ela tava, que a situação tava muitíssimo complicada e que ele achava que ela não resistiria. E novamente o que eu tinha a dizer? ABSOLUTAMENTE NADA! "Huuum... coitada né?".
Então ontem a vizinha morreu. Claro que o informe chegou sem que eu o chamasse. Vários informes. E um deles veio acompanhado de um oferecimento de carona pra ir ao velório. Mas peraí? COMO ASSIM VELÓRIO? O velório, que eu saiba, (me corrija se eu estiver errada) serve pras pessoas darem uma última olhada na pessoa querida, pra consolarem os parentes, pra compartilharem lembranças boas que o falecido deixou. Como eu poderia me encaixar em qualquer uma dessas possibilidades? Disse que não ia não, obrigada. Ficaram chocadíssimos. E tenho certeza de que, na falta de assunto e intimidade com a família na reunião de condomínio do velório, vai ser colocada em pauta a insensibilidade terrível da menina da casa 15.
Ora mas francamente! Solidariedade é uma coisa muito bonita na maioria das vezes, mas essa obrigação de fingir uma coisa que não se sente, um consolo impossível de ser dado, essa mania de usar a falsa preocupação pra transformar a tragédia de alguém num folhetim, isso sim é a maior falta de respeito DO MUNDO!
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Aí lembrei que ano retrasado uma quase-vizinha igualmente nova morreu de maneira igualmente trágica. Acontece que essa eu conhecia relativamente bem. Só que tinha um detalhe: eu não gostava dela e tampouco ela de mim. E não era segredo, todo mundo sabia que a gente não se gostava. E nem era aquele caso de amizade lindíssima que foi terminada com uma briguinha e permaneceu terminada por causa de orgulho e tal. Eu nunca tive grandes amizades com ela e não gostava porque não gostava, do mesmo jeito que não gosto de um monte de gente e que um monte de gente não gosta de mim também. Daí ela morreu e ali eu realmente me comovi, mas porque eu sou muito amiga de uma prima dela e tenho ótimas relações com a família dessa minha amiga, obviamente parentes da falecida. Então o clima de tristeza chegou até mim, mas preferi não ir ao velório nem enterro mesmo assim. Com que cara eu ia chegar lá? O que eu diria pra mãe, irmã, irmão, pai, se TODO MUNDO sempre soube que a gente se detestava? Se eu fosse a mãe dela e me visse lá me encheria de porrada. Provavelmente aquela senhora muito distinta e adepta às normas sociais jamais faria isso. Mas deveria, caso eu me metesse onde não devia. Então não fui. Mesmo com esses motivos, minha mãe achou o cúmulo do absurdo eu não ter apoiado minha amiga num momento tão difícil etc e tal e me deu um sermão gigante que, naquele momento, me fez sentir a pior pessoa do universo. Somente duas noites depois tive coragem de ligar pro celular dela pedindo desculpa pela minha omissão e tentando explicar a falta de apoio, que eu não levo jeito pra essas coisas, que tenho dificuldade de lidar com isso, mas que se ela precisasse de qualquer coisa eu estava a disposição. Ela não atendeu. Liguei de novo e ela não atendeu de novo. O peso triplicou. Realmente deveria estar muito sentida comigo. Dormi mal. Mas de manhã minha amiga me ligou de volta...
... se desculpando porque não ouviu o telefone tocar pois estava no show do Los Hermanos. E me convidou pra ir na casa dela pra me contar as novidades da noite anterior. Que coisa, não?
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Pode não parecer, mas se tratando de alguns assuntos eu sou uma pessoa um pouco ética. E minha ética não permite fazer pieguice e dramalhão com o sofrimento sincero dos outros. E muito menos fingir que é meu. O melhor que eu posso fazer num caso como esse, é desejar (sem nenhuma ironia), uma boa viagem pra Rafaela.