Ato contínuo
Estou fazendo um workshop de Assistente de Direção. O professor é um cineasta respeitado que, além de ter um curriculozão nas costas, é engraçadinho, contador de histórias e conhece TODOS os babados dos bastidores do Chatô, o filme inascido do Guilherme Fontes que gerou um ESCÂNDALO histórico na indústria cinematográfica brasileira.
Certa aula, ele nos mandou um roteiro e nos incubiu de ler e levar dúvidas no dia seguinte. Li e levei dúvidas. Uma delas, era por qual motivo o roteiro parecia um conto. Ele se explicou dizendo que tinha formação literária, então gostava de escrever o roteiro mais rebuscado, ao invés de botar só as ações secas como "Fulano entra. Fulano fecha a porta. Beltrano grita. Fulano se assusta.", que é o que normalmente se faz. Ok, cada um escreve do jeito que quer e o diretor (no caso, ele mesmo) que se vire pra mostrar na tela ações como "O sangue de Omar fica gelado".
Mas o roteiro também tinha indicações de movimentos de câmera (outra coisa incomum, porém nem tanto). E alguns eu não conhecia, como stock shot. Perguntei o que eram e ele respondeu com toda boa vontade. Só que determinada cena começava com a seguinte frase "Ato contínio Omar desce a escada". E eu, pobre semi-analfabeta, achei de perguntar se "ato contínuo" era "plano-seqüencia". Fui presenteada com o troféu mobral. "É que a gente conhece muito mal a nossa língua né...", ele disse com um risinho escrotinho na carinha. Não, eu não conheço muito mal a nossa língua. Tenho uma relação até bem estreita com a nossa língua. Sei usar ponto-e-vírgula, trema e até crase. É fato que temos uns desentendimentos (nunca acerto de primeira escrever "certeza" e "faixa", por exemplo), mas no geral nos damos muito bem desde os meus tempos de criança. Conheço mal a nossa língua... Cada uma... ¬¬
Daí o cine-Pasquale novamente reforçou que tinha formação literária e, por conta disso, era influenciado por autores "tradicionais" como Machado de Assis (que, segundo ele, gosta muito de começar sentenças com "ato contínuo"). Ok, honey. Se eu estivesse lendo um livro do Machado de Assis, nunca estranharia firulas lingüísticas. Mas não sabia que existem roteiristas rebuscados que escrevem ações como "Ato contínuo Omar abre a porta ainda macambúzio, até que sente o fervor cálido do rancor incutindo suas nervuras e atira-se em um disparate".
Se bem que de cineasta deve-se esperar de tudo.
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A propósito... a história do roteiro (que não tem nadinha de Machado de Assis) é muito boa. E as aulas também são, admito. |