Só queria que você soubesse que não vai mais ser a mesma coisa. Ok, como se isso não fosse óbvio... Mas queria te dizer que a Feirinha de Laranjeiras, o chorinho e o feirante racista, e o cantor, e o bilíngüe, e o romântico, nunca mais estarão lá.
- Eu amo muito minha mulher. Ela é maravilhosa! Eu dei muita sorte. - Sei. - Só tem um defeito: bebe muita cachaça. Mas fora isso... - E preta, ela não é não?
O Democráticos nunca mais estará lá também, nenhum sábado. O cara que paquera todo mundo, o palco comprido com você sentadinha no canto e o seu pé descalço viradinho pra baixo, o chato de blusa azul, a caipirinha forte demais, a nega traída que marca território te olhando de cima, disfarçando a insegurança, mas dá bandeira porque, sem saber que eu estava ali na condição de sua discípula, me deixa perceber que ela fala grosso no ouvido do galanteador:
- QUEM É ESSA MULÉ?
Não tem mais discussão com você dizendo que o Rio é todo lindo e eu dizendo que todo, todo não é não. E você dizendo que já morou no subúrbio e sabe muito bem do que está falando, que acha o Rio lindo mesmo assim, até o que é feio é lindo, que nem é tão violento, que toda cidade grande é assim mesmo e eu querendo te matar. Mas aí você quer marcar todos os programas perto da sua casa porque se recusa a se deslocar ao bairro vizinho. Afinal, mesmo defendendo que já morou no subúrbio e tudo, acaba mostrando a carteirinha de Zona Sul quando reclama que Botafogo fica muuuuito longe de Ipanema, e por isso você tem preguiça de ir à General Osório. “Não podemos marcar na Urca não?” Cara-de-pau. Falando nisso, também não tem mais vista bonita no Praia Shopping. Não tem.
Budapeste até já saiu de cartaz. E também já acabou o festival de cinema francês no Estação e o festival de música francesa no Forte. E aqueles franceses tocando piano no Cecília Meireles e agradecendo em francês no final? Não tem mais isso, porque não tem mais graça sem você rindo da minha revolta. Francês é tudo folgado, queria ver eu tocando piano na França e agradecendo em português ou, o que é pior, em inglês. Mas você não se importa, porque fala francês. E inglês. E italiano. E espanhol também, se não me engano. Você fala coisa à beça e quase nem fala, eu só fui descobrindo por acaso. Com tantos dotes, ainda acho que seu maior mérito é a modéstia. Eu jamais seria tanto.
Não tem mais você querendo ser individualista dizendo que não vai ciceronear visita não, que tem mais o que fazer, que tem que ver sua irmã, que tem que ver Hamlet, que tem que dormir, que tem que conversar com ele no msn. Mas no fim das contas me liga a cobrar perguntando onde estamos, me leva pra sua casa, me faz massagem, me empresta perfume caro, me prepara bebida de mulherzinha e café da manhã com mesa posta e bandeja, me diz que eu sou a pessoa mais engraçada do mundo (ai, que bem pro meu ego!), que eu vou arrumar emprego já já, que ano que vem vamos morar juntas em Botafogo.
Não tem mais o seu sotaque carioca dizendo pra dobrar à ixquierda, sempre provocando o meu riso. Ai, foi mal, eu te achei em Aracaju com sotaque de Aracaju. Nem adianta vir com o papo de que você é carioca da gema também e, assim como eu, foi arrancada das entranhas da Cidade Maravilhosa e levada à força pra crescer em Aracaju. Eu sou muito mais carioca que você e ainda falo oxe. Além do mais, não admito quem nunca ouviu Gaiola das Popozudas me mandar virar à ixquierda.
E você nem ligou, né? Sacanagem, eu tinha umas lembrancinhas pra mandar pra galera. Mas tudo bem, eu confesso que naquele jantar sabia que não nos veríamos mais, que iríamos manter a tradição de não termos ritual de despedida de verdade, somente um mentiroso “Tchau, amanhã eu te ligo!” Você acha que me engana, é? Nem tem amanhã. Amanhã só ano que vem.
Porque ano que vem você volta, né? Ano que vem vai ter tudo de novo, mas pra sempre, né? Então tá, boa viagem. Come queijo coalho, acarajé, tapioca de três queijos. Prepara lá seu projeto de mestrado, mas não se esqueça que a gente combinou hein. Ele vai ser preparado de maneira que só vai passar aqui e lá não. Formô? Então já é. Diz pro pessoal que eu mandei um beijo.
Mas ó, me faz um favor: não deixa de dizer ixquierda não, tá?
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