1.22.2010
A quem interessar possa
 
Eu não gosto de você. Não é nada pessoal. Ambas sabemos que defeitos todo mundo tem, inclusive eu. E esse mesmo mundo cheio de defeitos é testemunha do seu descomunal esforço para me agradar, conquistar minha amizade, despertar meu respeito e me contagiar com a sua alegria de viver. Se você não conseguiu, não se culpe (e aposto que não o faz). Deixa que esse carma eu carrego. Sou ingrata e não gosto de você.

Não gosto do seu sorriso. Digo que tenho certa resistência a sorrisos que não me convencem, mas longe de mim desconfiar da sua felicidade tão autêntica! Se não gosto, é somente porque ainda não cheguei a tal grau de evolução, ou talvez a vida não tenha dispensado a mim os mesmos bons tratos com os quais te agraciou. Então admito que você tem motivos de sobra para sorrir e por isso o faz. Mas - perdoe a minha inveja - seu sorriso me lembra que eu, desprovida de generosidade, teimo em reservar o meu pra ocasiões especiais. Não gasto minha alegria, pois ela é coisa rara. Não gasto minha simpatia, pois ela não custa barato. Não sou alegre o tempo inteiro, porque dá trabalho e tenho preguiça. A sua disposição em ser feliz me causa certo desconforto.

Também não gosto da sua inacreditável capacidade de estabelecer conexões intensas. Meu deus, quantos amigos você tem! Que lindeza! Todos te admiram, todos te cumprimentam, todos te congratulam, todos os dias alguém tem um motivo especial para te mandar alguma mensagem de feliz natal, feliz ano novo, feliz páscoa, feliz mardi gras, feliz hanuká. Com tanta gente te desejando tanta felicidade, não é de se espantar que a fagulha boa do Universo escute e te atinja de fato, acendendo aquele seu sorriso constante sobre o qual falei agora pouco. Mais uma vez, minha desamada, te invejo. Quisera eu que meus olhos tivessem sido confeccionados pela Divindade com as mesmas lentes usadas nos seus. Ao contrário, ganhei a lupa da desconfiança. Estou sempre assim, preparada pra encontrar o tédio e a mediocridade como regras primordiais em qualquer relacionamento que me brote no caminho – sendo somente alguns casos destinados à fina prateleira da exceção. O mesmo mundo que te deslumbra me cansa.

O que mais me incomoda nisso, anjo nosso, é que você não se limita apenas ao mundo. Você também quer me perceber sob seu prisma tão colorido de amor e misericórdia. Eu digo que não sou merecedora de tantos elogios, que a beleza que você vê em minha alma está na indulgência dos seus olhos. Mas você é bondosa demais para aceitar isso. Ao contrário, teima em me desenhar muito mais linda e cheia de brandura do que de fato sou. Então me encontro sempre na cansativa posição de reforçar a todo momento que sou mesmo tão pútrida, mas tão pútrida, que nem tenho o pudor de negá-lo. Ainda assim, minha falta de constrangimento pela fetidez do meu espírito é sempre interpretada pela sua benevolência como modéstia. A sua compaixão me desgasta.

E é justamente por esse seu naturalíssimo instinto maternal dispensado a todos os seres como se  eles fossem crias do seu ventre, que você, além de ser impedida de enxergar quaisquer dos meus terríveis defeitos, ainda acredita saber tudo que se passa no meu interior e todas as curas para as inúmeras mazelas da minha alma. Seus conselhos cheios de zelo sobre os caminhos que devo tomar me irritam. Seus incansáveis alertas sobre inquietações e questionamentos da minha intimidade - que sua enorme sensibilidade tornou-lhe mais capaz do que eu mesma de reconhecer - me enfurecem.

Sinto-me como uma velha ranzinza invejosa da sua jovialidade, ingenuidade e nobreza de espírito. Como você é boa e humilde! E isso é tão evidente que, conforme você mesma faz questão de ressaltar, todas as rodas comentam a luminosidade da sua aura. Quisera a Providência Divina ter seguido seu exemplo de generosidade e espalhado mais seres com tamanha luz neste mundo. Infelizmente, por motivos que sou ainda muito pequena para decifrar, Ela balanceou a existência com alguns toques de escuridão e, para o meu azar, minha alma foi se formar justamente neste magote. Sei que sua imensa capacidade de compaixão pode até reconhecer que sou vítima de um infeliz acaso e perdoar minha vileza. Mas não peço que me perdoe. Não sou digna de pedi-lo.

Por isso recolho-me à solidão - esse calabouço dos ingratos! – e afasto-me para nunca mais correr o risco de abusar da sua descomunal benevolência.

Adeus.
posted by Arlequina @ 11:12 AM  
 



9 Comments:
  • At 9:37 PM, Anonymous Anônimo said…

    hmm sempre escreves bem. N sei o que se passou mas pare de caraminholar. Vc é uma inspiradora artista. Não desapareça denovo.

     
  • At 9:40 PM, Anonymous Anônimo said…

    Achei que vc ia escrever sobre isso:

    http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u683017.shtml

    ...e é qdo tudo começa... :)

     
  • At 9:52 PM, Anonymous Anônimo said…

    ps denovo: (resposta do teu comment lá) Pietro.

     
  • At 5:57 AM, Blogger Arlequina said…

    caraminholar é bom e evita o câncer =)

    e pq eu escreveria sobre uma banda que eu nem conheço que morreu numa praia feia que eu detesto?


    oxe.

    =p

     
  • At 10:22 AM, Anonymous Anônimo said…

    :P

     
  • At 8:31 AM, Blogger Clarissa said…

    Hahahahaha

    Hm essa inquietação não é nova. E você escreveu magistralmente! Quando vc publicar um livro dos seus escritos,esse texto tem que fazer parte. Junto aquele texto sobre Shiva na sua vida e sobre aquele outro que você usava (ou ainda usa?) como descrição de si.
    Beijos

     
  • At 8:42 AM, Anonymous Anônimo said…

    Este comentário foi removido por um administrador do blog.

     
  • At 2:25 PM, Blogger Fátima Nascimento said…

    Bem ao estilo Machadiano. Acho que vc poderia pensar em publicar um livro com suas crônicas.
    É chata a repetição, mas sou obrigada a dizer que vc descreve perfeitamente coisas que sinto.

    =*

     
  • At 11:07 PM, Blogger tatiana hora said…

    você escreve muito bem!

     
Postar um comentário
<< Home


il libretto

 

Rss


"Em qualquer terra em que os homens amem. 
 Em qualquer tempo onde os homens sonhem.
 
                                                        Na vida."

Máscaras - Menotti del Picchia

 

outros palhaços

 

Ai Minha Santa Aquerupita!
By Julia
Meu Melhor Amigo Gay
Quero te pegar sóbrio
Cara de Milho
Humano e Patético
Bodega da Loli
Café e Cigarros
Flor de Hospital
Diário de Trabalho
Homem é Tudo Palhaço
Vida Bizarra
A Casa das Mil Portas

 

clap

 

Opera Bufa
Desenblogue
Pérolas para porcos
Piores Briefings do Mundo
Malvados
Vida Besta
Omelete
Danilo Gentili
Wagner & Beethoven
Ryotiras
Vai trabalhar, vagabundo!
Follow the Colours
Design On The Rocks
Puta Sacada
4P
Anões em Chamas
Kibe Loco

 

o carnaval que passou