Lembra, José? Você não tinha infância porque morava no subúrbio carioca onde não se brinca na rua sem risco de tomar bala perdida. Não tinha amigos no colégio porque era nerd demais pra ter amigos. Então você lia e via televisão. Lia muito e via muita televisão. E sempre se perguntava: o que estou perdendo lá fora dessa vida suburbana?
Daí sua família se mudou pra uma cidade tranqüila onde se brinca na rua e não se toma bala perdida. Mas já não era mais idade de brincar na rua. Era hora de aprender a se maquiar, pintar o cabelo e dar o primeiro beijo.
Então você não tinha adolescência porque era adestrado por um par de pais neuróticos que te criavam em regime militar. Não podia namorar, não podia pintar o cabelo, não podia fazer um piercing, não podia ler revista capricho, não podia sair, não podia conversar com meninos, não podia falar no telefone. Tinha amigas e ouvia algumas histórias, mas não tinha as próprias histórias, portanto inventava. Então você inventava histórias, lia e via televisão. Muitas histórias, muita leitura e muita, muita televisão. E sempre se perguntava: o que estou perdendo lá fora de casa?
Um belo dia você deu uma de Rita Lee, resolveu mudar e fazer tudo que queria fazer. De repente ser a ovelha negra da família virou a missão da sua vida. É isso aí, atitude e personalidade! Então você ouvia rock escondido, saía escondido, bebia escondido, namorava escondido, fumava escondido, se tatuava escondido. Já não lia tanto, já não via tanta televisão. Mas em compensação, as histórias... Ah, as histórias...
Até que você entrou na faculdade, José. E de repente a cidade tranqüila ficou pequena demais. Na cidadezinha não tinha show, na cidadezinha não tinha gente bonita, na cidadezinha não tinha gente inteligente, na cidadezinha só tinha gente medíocre que freqüentava os mesmos lugares e só falava as mesmas merdas. E sempre se perguntava: o que estou perdendo lá fora dessa vida de cidadezinha pequena?
Aí você encontrou um mundo paralelo dentro da própria cidadezinha pequena. Pessoas inteligentes, pessoas divertidas, pessoas que não têm medo de experimentar o novo, pessoas que não precisam fazer parte da massa, pessoas que não julgam, que pensam mais, que olham além e que vão dominar o universo. E que sorte a sua hein, José?! Nesse mundo paralelo você encontrou companheiros maravilhosos e até mesmo uns quatro ou cinco grandessíssimos amigos. Pouquíssima leitura, televisão moderada e muita, muita, muuuita história. Grandes histórias, José! Só que de repente o seu mundinho paralelo começou a ficar pequeno também. E você começa a se perguntar: o que estou perdendo lá fora desse mundo que eu inventei?
Até que você acabou a faculdade. E então eu é que te pergunto:
E agora, José?
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O engraçado de ouvir histórias da geração dos nossos pais, é que aparentemente naquele tempo não havia classe média. Todo cinquëntão se gaba do quanto batalhou na vida, do quanto sofreu, do quanto estudou, do quanto passou fome, de que tinha que andar não sei quantos quilômetros até a faculdade porque não tinha dinheiro pra pegar ônibus, que tinha que sacrificar isso e aquilo. E eles adoram ressaltar que a vida é mais fácil pra você, que já nasceu na classe média,
"você, garotinho inocente, garotinho juvenil, garotinho criado a leite moça, leite com pêra, ovomaltino na geladeira".
Então na teoria funciona assim: estudamos em colégio particular e o pico da nossa angústia adolescente acontece aos 17 anos, que é basicamente passar no vestibular e entrar uma boa faculdade que garanta uma carreira brilhante no futuro. Porque vejam bem... A gente não precisa comprar imóvel e carro. Isso nossos pais que passaram fome e andaram 10 quilômetros diários até a faculdade, já conquistaram e nós recebemos assim, como eles gostam de dizer “de mão beijada”. A nossa missão agora é: não cagar tudo. Afinal foi muito sacrifício deles (e tudo “por nós”, eles também gostam de ressaltar) pra gente simplesmente jogar pelo ralo. Então se vira, maluco, sua vida é fácil, vai lá e faça melhor.
Mas a nossa geração criada a Internet banda larga e tv a cabo num estado democrático, um dia faz vinte e poucos anos, termina a faculdade e se depara com o “e agora”? Mas é um
E AGORA? com o peso e o tamanho de uma maldição cármica. Porque
AGORA não basta ter um emprego. Tem que
BRILHAR no mercado de trabalho. Não basta ganhar dinheiro. Tem que ter
estabilidade. Não basta nem se quer ser agora. Tem que ser
pra vida inteira. E não basta conquistar o status de classe média, ah não, isso a gente já tem. Tem que ser
realizado profissionalmente, tem que ser
bem sucedido, tem que ter
qualidade de vida e além disso tudo ainda tem que
ser feliz! Tem que escolher o caminho, aquele que vai levar ao pote de ouro no final do arco-íres. E um passo em falso agora pode levar a sua vida inteira à ruína. Não pode perder tempo, não pode ficar parado, não pode ficar sem emprego, não pode ser qualquer emprego, não pode estagnar a carreira, não pode ser demitido, não pode pensar demais, não pode ficar indeciso. Velocità, velocità!!!
Atirem-me pedras, mas estou começando a desconfiar que as coisas eram mais fáceis no tempo que a grande preocupação era somente ganhar dinheiro honesto, não importa como. Realização e felicidade vinham no pacote.
A minha geração é aquela que acaba a faculdade
“sozinha no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope...”. Aquela que vai andando porque não pode ficar parada, mas vai andando sem saber onde está indo nem o que está procurando. É a geração do
“Você marcha, José. José para onde?”.
E não, isso não é fácil.