quero beber na rua ser mal atendida no boteco comer batata frita com ketchup e skol não dar gorjeta ver o dia amanhecer conhecer gente não nice pendurar roupa no varal comer tapioca caranguejo bobó de camarão acarajé com muito dendê sushi do Gralha Azul Biscoito Globo Mate Leão café suco de mangaba festa de rua de graça forró no Forró Caju pagode na Lapa roque no Heavy Duty tuntz tuntz na DDK
Uma das poucas coisas ruins de viajar sozinha é que ela não aparece nas fotos. Posar pra desconhecidos é chato porque ela gosta de tirar foto fazendo careta. Fazer careta pra estranhos que gentilmente se prestam a tirar fotos de turista é bizarro e aparecer com a tradicional cara idiota de turista na frente da paisagem é inconcebível.
Por isso que ela ficou tão feliz ao chegar ao Brooklyn e descobrir que o alemão tinha acabado de chegar também. Os dois ficariam hospedados na mesma sala, na casa desses novaiorquinos legais o suficiente pra hospedar estrangeiros desconhecidos e não tão legais a ponto de querer acompanhá-los em programas turísticos na cidade onde nasceram. O alemão nem era tão bonito assim, mas era loiro de olho azul. Todo mundo do mundo inteiro sabe que o ponto fraco dela é um loiro de olho azul, a despeito do velho discurso sobre como a colonização européia e os padrões mundiais de estética conspiram para que todo brasileiro dê mais valor à beleza caucasiana e viva em eterno conflito de identidade sobre a própria imagem blá blá. Na primeira conversa já descobriram que tinham gosto em comum pra música, filme, arte. Ele cantava numa banda e ria das piadas dela. Ela aprendeu a dizer Gute Nacht e, por algum motivo, ele já sabia dizer boa noite.
Na primeira manhã ela acorda querendo pegar o metrô até aquela Ferry de graça e quando chegar na Ferry ver Manhattan, New Jersey e a Estátua da Liberdade. Ele queria cruzar a Ponte do Brooklyn a pé. Ta maluco? São três horas de caminhada, alemão bizarro! Chegaram ao acordo de que pegariam o metrô até a Ponte do Brooklyn, cruzariam o caminho todo a pé e depois iriam à Ferry de graça dizer oi à Estátua da Liberdade. Outra coisa ruim de viajar sozinha é que ela sempre teve PÉSSIMO senso de direção e se perde onde quer que vá. “Escolhe aonde vamos que eu te sigo,” ela disse, dando a falsa impressão de que era paciente e flexível. Na verdade, era preguiça de decifrar o mapa e a bagunça que estavam as linhas do metrô em obra.
Então eles caminham na ponte tagarelando num inglês intermediário sobre Alemanha, Brasil, América, Peru, Europa, comida, bebida, calor que não incomoda porque no Brasil é muito pior, quando de repente ela aparece: Manhattan! A melhor coisa que ela poderia ter feito nessa viagem foi ter concordado em dar bom dia à Nova Iorque do meio da Ponte do Brooklyn. Manhattan estava toda lá, linda, alta, cheia de prédios, de histórias, de filmes, de contos, de atentados, de lojas, de notícias, de contrabando, de gente de terno, de gente louca, de gente correndo, de mundo. Manhattan! Os dois lá, com cara de besta, encantados com Manhattan. E nada mais acontecendo no universo além disso.
O resto do dia foi divertido. Almoço no Mc Donalds, porque ele também achava um desperdício gastar dinheiro com comida de verdade quando se viaja. Compras na Broadway, porque ele também adorava descobrir roupa de marca mais barata aqui do que no próprio país. Passeio na Ferry de graça porque ele também queria ver a Estátua da Liberdade sem pagar pra ir lá em cima. Fim de tarde vendo show de banda de jazz que tocava por gorjeta na Washington Square. Enfim, dois mochileiros com dólares limitados querendo engolir Nova Iorque em um dia: praticamente almas gêmeas. E ele tirava fotos dela fazendo careta. Muitas, muitas fotos.
Voltaram pra casa animados, contando pros anfitriões todas as aventuras de turista. Foram convidados a ir a uma festa local chamada Rubulad Party, tradicional do Brooklyn, coisa de novaiorquino mesmo de verdade. Ah, só mais uma festa, o que pode ter lá? Pensando assim, deixaram a câmera em casa, pra se arrepender imediatamente após cruzarem a porta de entrada e perceberem que acabaram de chegar no lugar mais sensacional de todos os tempos. Uma decoração psicodélica com muitas, muitas coisas penduradas brilhando com luz fluorescente. Muita gente louca, linda, fantasiada, bem vestida ou quase despida. Música sensacionalmente boa: blues, jazz, soul, até samba. Todo tipo de black music com exceção de hip hop, coisa raríssima em uma festa nos EUA. Muitas, muitas bandas, muitos ambientes, muita risada e zero câmera. Scheiße!
No segundo dia, ela tinha uma tour a fazer em Flushing, um fim do mundo na casa do cacete em Queens. Na verdade era uma visita a uma colega virtual que estava se oferecendo pra mostrar lugares chineses com comidas bizarramente chinesas que ela jamais experimentaria em nenhum outro lugar do mundo. A não ser na China. "Posso ir também?" ele surpreendentemente perguntou. Quem mais além dela poderia querer ir pra Flushing? Well, natürlich!
Depois de encher a barriga de tofu e bubble tea onde o vento faz a curva, eles voltaram à vida de turista normal. Times Square e todos aqueles anúncios que se mexem, dançam e falam, enlouquecendo a vista; Central Park e todas aquelas árvores cheias, lindas e roxas na frente do paredão de prédio que envolve o parque; mais Broadway, mais compras, roupas esporte, souvenirs, camisetas escritas I coração NY... E a ela foi concedida uma regalia: "Se eu te pedir pra pegar um metrô até o outro lado de Manhattan, andar um pedação até um restaurante besta e feio pra tirar uma foto minha lá, você vai?" Ele faz cara de anh. Ela explicou que era o restaurante que aparecia em todos os episódios do Seinfeld. E ela era louca, LOUCA por Seinfeld. Ele disse sim, eles foram e quando ela avistou o restaurante ficou serelepe feito criança pobre vendo o helicóptero do Papai Noel chegando na favela. Tanta alegria rendeu um abraço de thank you. Imediatamente ela se lembrou de um mito chamado barreiras culturais. Não importa o quanto você seja brasileira, não importa o quanto você esteja feliz: não se abraça alguém do Leste Europeu sem aviso prévio. Espontaneidade não é o forte desse povo. Ele congelou com cara de "These pretzels are making me thirsty" e ela se deu conta de que tinha criado uma situação absurdamente constrangedora pro pobre alemão, que sabe-se lá qual foi a ultima vez na vida que tinha feito qualquer contato físico mais próximo do que um aperto de mão. Mas tudo acabou em pizza. Uma fatia enorme da mundialmente conhecida pizza de Nova Iorque, daquelas que só se encontra igual em São Paulo. E talvez na Itália.
Chegaram em casa e os anfitriões tinham um outro convite: uma das anfitriãs canta numa banda de soul e vai dar um show daqui a duas noites. Ela aceitou prontamente. Ele murchou, dizendo que só tinha mais dois míseros dias em NY. COMO ASSIM VOCÊ JÁ VAI EMBORA DEPOIS DE AMANHÃ?? Ela não gostou da notícia. Já estava acostumada com o tirador de foto. O alemão tímido. O piadeiro. O companheiro de viagem. O decifrador de mapas. O couch partner. "Eu vou sentir sua falta!", ela disse. "Não vai não, eu sou substituível."
Lista de coisas que não se fazem com semi-conhecidos do Leste Europeu: um, contato físico; dois, proferir frases que contenham quaisquer variações da palavra "sentir."
Eles não sentem. Não se apegam. Substituem. Povo prático.
Por isso que ela acordou no dia seguinte anunciando que seja lá o que fizesse, ia fazer sozinha. Hoje ela quer ir ao Guggenheim e depois fazer uma caminhada por todos os pontos que serviram de cenário pra filmes do Woody Allen. Você gosta de Woody Allen? Não? Que pena, então é melhor fazer suas coisas aê porque vai ser muito chato pra você. Ele resolveu ir ao MOMA. See you later.
Foi um dia estranho. O Guggenheim não estava funcionando direito. Choveu, ela só fez metade da caminhada do Woody Allen. Se perdeu no metrô. Pelo menos enquanto ela descobria que linha pegar pra ir pra casa, tinha um cara lá tocando violino elétrico fantasticamente. No meio da estação de metrô! Ela amava Nova Iorque! Amava tanto que comprou um CD do cara e resolveu que aquela seria a trilha sonora da viagem. Finalmente descobriu o caminho de volta pra casa e meia hora depois dela, ele chega. Ela pergunta como foi o dia dele, ele diz que foi sem-graça, que o MOMA estava cheio, que a cidade é feia quando chove.
Era segunda-feira de noite, não estava chovendo mais e eles estavam entediados. Ela lia um livro e ele brincava com o I-pod. Ele perguntou se ela queria dar uma volta. Ok, ela respondeu, querendo ser indiferente. Caminhando pelo Brooklyn de madrugada, com jardins bonitinhos e prédios de tijolo vermelho combinando com as árvores de folha roxa, eles se perguntavam onde estava aquele Brooklyn horroroso dos filmes, com vizinhanças depredadas e gangsta com dente de ouro e arma na mão. Partindo daí, a conversa rumou ao tópico "estereótipos." Ela falou sobre o mochileiro suíço que um dia apareceu na cidadezinha onde ela morava no Brasil e conviveu bem de perto com ela e os amigos dela. Sobre como ele não ia embora, mas não explicava porque ainda estava lá. Sobre como uma vez ele encheu o rabo de cachaça e saiu abraçando todo mundo dizendo que nunca na vida tinha conhecido pessoas tão sensacionais e por isso não conseguia ir embora. E no dia seguinte acordou de ressaca, fez a mala e foi embora. Ele achou a história engraçada e ilustrou que sabia muito bem o que aconteceu com o suíço. Que europeu é frio. Que europeu é estranho. Que europeu não sabe demonstrar o que sente. Que europeu é devagar. Ela concluiu que aquilo era uma cantada européia.
Resolveram voltar pra casa e no meio do caminho tinha um bar. Tinha um bar no meio do caminho. Cheio. Segunda-feira. Duas e meia da manhã. Mágica. Entraram e foram saudados pelo bartender que, ao se animar com a visita inesperada de um alemão e uma brasileira, passou a fazer todas as bebidas com dose dupla de seja lá o que eles pedissem. Um grupo com cara de universitários intelectuais apareceu com uma garrafa de vodca da Eslovênia perguntando se eles queriam experimentar. A outra bartender deu shots de graça pro bar inteiro porque estava fazendo aniversário. Ah, quase me esqueço, essa noite era aniversário dela também. E ela estava lá, linda e ruiva, celebrando 26 anos de vida num bar mágico, numa segunda-feira mágica, num Brooklyn mágico com um alemão que tomava muitos shots, tentando afastar as raízes do estereótipo que dizem que alemão não chega junto. Um aniversário peculiar.
No dia seguinte ele faz um anúncio: vai tentar trocar a passagem de volta pra Alemanha. Depois de tão sensacional tratamento recebido naquela casa, ele concluiu que seria uma desfeita descabida sair de Nova Iorque sem prestigiar o show da anfitriã.
Pra turistagem do dia, ela tinha planos de ir ao Metropolitan Museum e olhar mais umas locações do Woody. Ele queria ir ao topo do Rockefeller Center olhar mais ângulos de Manhattan. Papo furado, porque todo mundo já havia percebido que eles queriam mesmo era estar juntos em NY. Por isso pegaram o metrô juntos, mesmo indo pra lugares diferentes. Antes de começar o itinerário turístico, ele ia à agência de viagem, que ficava algumas estações antes da dela. Quando chegou o ponto da agência, ele levantou, deu um tapinha no joelho dela e disse "This is for you!" e saiu do metrô. Ela ficou lá, com cara de besta, querendo entender o que aconteceu. Primeiro, contato físico espontâneo e repentino. Segundo, o que exatamente era pra ela? A troca de passagem? Então o show da anfitriã era só uma desculpa? Ou o que ele disse era só algum comentário sobre o que eles estavam falando antes? Do que eles estavam falando antes?
Horas depois, ele manda uma mensagem de texto pro celular dela dizendo que não tinha conseguido trocar a passagem não e chamando pra encontrar com ele no Rockfeller Center quatro e meia. Ela tentou ser blasé e disse que ia fazer compras. Besteira ficar se empolgando com o que já vai acabar, eu hein. Quatro e quarenta ela resolveu que queria encontrar com ele no Rockfeller Center sim e foi lá e ele não estava. Então ela manda uma mensagem perguntando cadê você e ele diz que também foi fazer compras. Ela diz que pena porque ela tinha resolvido ir ao topo do Rockfeller Center e a vista era linda. Ele disse que mudou de idéia porque estava ficando enevoado e não daria pra ver nada. Ela disse que era verdade, mas naquela hora ela estava lá e via muita coisa. Ele foi. A neblina chegou primeiro do que ele, mas ele não pareceu frustrado. Mesmo com a neblina estragando a vista, o topo do Rockefeller Center é um lugar pra se ir acompanhado.
Foram pra casa cedo nesse dia porque ela tinha um show pra ir e ele um avião pra pegar. Alegria foi quando ele disse que tinha trocado a passagem sim, só queria fazer surpresa. A notícia fez com que ela pulasse do sofá diretamente pra cima dele, num abraço que estava se lixando pra frescuras culturais. Ela estava feliz porque ele ia ficar mais uma noite e foda-se se manifestações de felicidade latina incomodam a ala vip do mundo. Brasileira feliz abraça. Dessa vez ele não pareceu constrangido.
O show foi fantástico. A cantora era ótima, a banda foi ótima, o clima estava ótimo e ela estava linda. Sabe que é verdade aquela história que diz que quando a gente está feliz e segura, exala uma energia que atrai a atenção das pessoas? Depois da cantora, a estrela do show era ela, a brasileira. Todo mundo queria compartilhar uma ou duas palavras que sabia dizer em português. Ou queria aprender. Ou queria dançar com ela. Ou queria pagar uma bebida. Ela estava perfeitamente onde gosta de estar: no centro das atenções. E ele sabia disso. Todas as vezes que ela olhava, ele estava olhando também. E ela sorria com uma cara de "eu quero você, besta!" e talvez ele entendesse, porque sorria de volta.
O contato físico dessa vez foi iniciativa dele no caminho pra casa. Um abraço daqueles que só passam um braço por cima do ombro, não abração do tipo "EEEEEEÊ ME DÁ UM ABRAÇO AQUIII!!" Mas ela, que sequer estava bêbada, se divertia internamente pensando em quantos shots aquele loiro teve que tomar pra ter a coragem de cometer tamanha ousadia. Chegaram em casa abraçados, fazendo carinho no cabelo, com uma proximidade completamente inédita em mais de 100 horas respirando o mesmo ar poluído de Nova Iorque. Milhões de tempos depois, ele arriscou um beijo. E ela, que perde o romantismo do momento mas não perde a piada, falou: "Só queria que você tentasse primeiro, silly!"
Então no dia seguinte ele acordou pra ir embora. Ela é péssima com despedida. Sempre quer dizer alguma coisa de impacto, alguma coisa memorável, e nunca diz nada. Arriscou falar em português, já que ele não ia entender mesmo, então não faria a grosseria que fez da primeira vez: "Vou sentir saudade." Surpresas do mundo, ele respondeu exatamente: "Vou sentir saudade também!" Hein?
Ele prometeu que vai ao Brasil fim do ano e vai ficar até o carnaval. Ela não acredita. Ela tem certeza de que ele vai voltar pra Europa, ser um europeu e esquecer isso tudo em algumas semanas. Foi um momento. Daqueles que acontecem uma vez na vida e que nunca têm retorno. Só um momento, não é pra se repetir e eles nunca mais vão se ver de novo. Mas quem se importa?