São Paulo fica impraticável quando chove. Isso é facto de conhecimento geral da nação. Fica impraticável pra todo e qualquer ser que precise se deslocar, seja de buzão, metrô, moto, até de helicóptero é impraticável. Mas na primeira chuva que peguei como moradora oficial da cidade, não pude me furtar de comentar o óbvio com um conhecido: “Tá foda se deslocar né?” No que ele me responde: Você vai ver só quando tiver um carro.
Os absurdos dessa declaração são tantos que nem sei por onde começar. Vamos ao mais gritante. Quando eu tiver um carro? QUANDO eu tiver um carro? Como assim QUANDO eu tiver um carro? Tipo... Não existe a possibilidade de eu NAO ter um carro? Simplesmente porque eu NAO QUERO ter um carro? Não posso não querer pagar IPVA, combustível, seguro, os estacionamentos mais caros do universo, ficar horas parada no trânsito, bater boca com motoboy, bater boca com flanelinha, bater boca com outros motoristas e, o pior de tudo: eu não posso querer dispensar o stress de desviar de enchente pra que meu carro não seja levado. Não posso. Porque quando eu tiver um carro, aí sim eu vou ver como é difícil morar aqui.
Toda vez que eu escuto esses “tem que” das pessoas, a forma assustadoramente espontânea com que elas dizem isso faz com que eu me belisque e me questione se estou vivendo na realidade certa. Celular tem que ser Iphone 4? Faculdade tem que ser Direito? Concurso tem que ser público? Filme tem que ser Cinemark? Roupa tem que ser shopping? Cerveja tem que ser Vila Madalena? Noite tem que ser 50 reais com nome na lista? Comer fora tem que ser lista de espera? Sobrancelha tem que ser design? Unha tem que ser esmalte importado? Viajar tem que ser avião? Buenos Aires tem que ser tango? Rio tem que ser Copa? Mochilão tem que ser Europa? Europa tem que ser Paris?
Não critico os luxos de ninguém, longe de mim. Até porque eu sou bem mão aberta e minha vida perde o sentido se faltarem algumas coisinhas medíocres cujo valor só eu entendo. Acontece que eu não saio por aí impondo meus luxos como verdade absoluta que deveriam guiar os desejos da humanidade. Eu admito que outras pessoas vivam de maneira diferente porque elas optaram viver assim. E só lamento essa comum dificuldade de enxergar possibilidades na existência. Aliás, lamentar eu lamento MESMO quando to indo embora e me perguntam onde meu carro tá estacionado. Poderia responder “Ta dentro do seu cu.” Mas sou fina demais pra isso. Mesmo a pé. |