Ela não é bonita, mas isso não é fundamental. Depois de dois segundos, ninguém percebe. Porque ela nasceu com o peito pra fora, a barriga pra dentro e a espinha ereta. Dizem até que já engatinhava assim. E dizem que, desde que começou a falar, ela sempre soube dizer por favor, obrigada e com licença, e sempre soube exatamente o momento certo de dizer. Ela sabe sorrir pra quem deve sorrir e olhar de cima quem merece ser olhado de cima. O critério não é posição social. Aliás, ela não fala sobre dinheiro, mas todos podem jurar que ela é rica, riquíssima, herdeira de uma grande fortuna, com príncipes e reis pendurados em sua árvore genealógica. Ela pode chegar descalça de pé sujo mas, quando sai, todos juram que ela estava de salto alto (e não estava?). Nas festas, ela fica quase a noite inteira em um único lugar, não circula muito. Não que ela seja tímida ou se esconda. Mas é porque aquele é o lugar dela e ela sabe muito bem que ponto é esse. Mesmo assim, é impossível não notar a sua presença ali. Porque quando ela fala - e não precisa falar alto - todos calam a boca.
E ela levanta o copo de cerveja como se brindasse com Chandon, come cachorro quente como se comesse foie gras e se suja quase de propósito só pra dar o espetáculo de charme e graça ao passar o guardanapo em volta da boca e na bochecha. Ela fica com calor e prende o cabelo de qualquer jeito com um pauzinho mas, que incrível, parece que ela acabou de sair de um salão de beleza com um penteado feito pro enterro da Rainha da Inglaterra. Ela entra no ônibus como quem sobe na carruagem. O motorista paralisa diante de tão incomum aparição, ela sorri e diz bom dia, e ele acorda com uma buzina lembrando que já é hora de tocar o veículo.
Ela não é menos espontânea do que eu, nem você. É que ela é espontaneamente assim mesmo. Ela é assim e ninguém ensinou, porque elegância é dom de Deus. Não se adquire, não se veste, não se aprende. Qualquer uma que tente imitá-la fica esnobe, ridícula, meio caricata. Ela é assim e nem sabe que é assim. E quando alguém comenta, ela sorri e cora. Charmosa, poderosa, linda.
“Pensou que eu não vinha mais, pensou
Cansou de esperar por mim
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim”
(Chico Buarque)
Uma carioca de sotaque nordestino: resumindo bastante um quarto de século, chega-se a essa definição. Explicando sem muitas delongas, mas com boa vontade, o problema é que ela nasceu no Rio pra ser carioca, mas teve esse direito arrancado de si. Seus pais, tão excessivamente cuidadosos, já não viam qualquer poesia na cidade (coitados!), a protegendo de tudo que fosse grande demais para que eles pudessem enxergar. Alguém já viu a grossura da linha que separa proteção de privação? De qualquer jeito, eles sabiam que um dia um muro de tijolo muito alto na rua das Turquesas não seria alto suficiente. Então a levaram pra uma pequena província nordestina, onde ela aprendeu a falar oxe, comer acarajé e preferir forró com zabumba. Mesmo assim, faltava um não sei o quê. Pode perguntar pra quem estava lá, todo mundo percebia.
Ela vinha ao Rio e não via o Rio. Era visita de família, não era cariocagem. Era passeio no shopping, na rua só de carro, casa de tio, aniversário de madrinha, natal, ano novo... O Rio era tédio, mesmice, chatice, caretice. Era aquele lugar onde as tias se juntavam pra dizer como ela cresceu, mesmo muito depois dela ter parado de crescer. Resolveu que não ia mais ao Rio e ia continuar crescendo longe mesmo. Mas ainda faltava, e todo mundo continuava percebendo. Até que um dia ela percebeu também.
Faltava a Portela, que sempre esteve tão pertinho do Madureira Shopping e ela nunca tinha sambado lá. Faltava saber que ali se pega um trem pra Central do Brasil. Faltava ver que entre a Glória e o Catete tem um louco que se veste de mulher e desfila o dia todo com salto alto e muito talco na cara. Faltava descobrir que se atravessar todas aquelas ruas do Aterro do Flamengo, chega-se ao lugar onde Escobar morreu afogado antes de ter traído Bentinho ou não – e que lugar mais lindo pra se morrer afogado! Faltava descobrir que na General Glicério tem uma feirinha todo sábado com banda de chorinho, que na Riachuelo tem o Clube dos Democráticos, que no alto da favela Tavares Bastos tem um albergue chamado The Maze onde gente cult se junta pra ouvir jazz toda primeira sexta-feira do mês. Faltava descobrir que o carioca da Urca é elegante por natureza, do jeito elegantemente despojado que somente um carioca sabe ser, discutindo a venda de uma Honda XRE e a compra de uma lancha, de bermudão e chinelo, tomando uma cerveja na calçada, enquanto o sol mais lindo e laranja do universo se põe ao fundo, elegantemente. Faltava saber que no Posto 9 gente sarada joga futevôlei a espera de ser descoberta e convidada pra estrelar a próxima temporada de Malhação. Faltava entender que boemia é muito mais do que Chico tomando chope no Leblon e algo menos do que mendigo bêbado caído nas escadarias da Lapa. Faltava ver gol do Flamengo no Maracanã. Faltava decorar sem querer os sambas do Cartola, as letras da Gaiola das Popozudas, e aprender a conjugar o verbo explanar com todas as entonações possíveis.
E quando tudo isso deixou de faltar, nem parecia que um dia faltou. Era como se nada fosse novidade, nem mesmo no exato momento da descoberta. Não houve muita euforia, nem deslumbramento. Foi tão discreto que, quando ela percebeu, simplesmente não faltava mais. No fim das contas, de algum jeito, ela sempre esteve ali. Porque ela nasceu pra ser carioca, e carioca ela sempre vai ser. Ainda que, por charme ou costume, não consiga parar de dizer oxe.