"Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra."
(Carlos Drummond de Andrade)
A pedra
Você estava certo quando se despediu dizendo que sou egoísta. Desculpa não ter concordado na hora. Naquele momento, eu simplesmente não te queria mais na minha vida porque a vida é minha e eu tenho o direito de não querer. Isso não foi egoísmo. Te convidar pra entrar que foi.
Pra admitir que sou egoísta, primeiro eu teria que confessar uma coisa. Eu vivo em função da minha instabilidade emocional. Como a piada de português, eu vejo a casca de banana no caminho e fico irritada porque sei que vou escorregar de novo. Não importa quantos amigos eu tenha. Não importa onde eu esteja. Não importa o que eu faça. Eu vou escorregar e cair no vão da existência.
As pessoas vão me odiar e será recíproco. Os defeitos do mundo ficarão debaixo de uma lupa e os meus também. O estômago vai doer, o coração vai disparar, eu não vou dormir nada e depois vou dormir demais, eu vou dar um jeito de discutir seriamente com meus melhores amigos, eu vou minimizar todas as minhas conquistas e reduzi-las à mais completa falta de sentido. Eu vou me lembrar de feridas que nunca cicatrizei e ter a nítida sensação de que todas foram parar na minha cara, bem à vista de todo mundo. Eu vou ficar frágil, patética, vulnerável, confusa. Não vou conseguir pensar direito porque, de tanto sentir, não sobrará tempo pra pensar em nada.
O escorregão vai ser tão violento, que tenho certeza de que vou morrer. Então preciso aproveitar a vida agora, preciso fazer novos amigos, preciso ser divertida, preciso ser amada, preciso dizer frases de efeito que me deixem importante, decidida, linda, leve. Preciso dançar a noite inteira, ler todos os livros, ouvir todas as músicas, comer todas as comidas, beber até transbordar. Sobretudo, preciso encontrar alguém que me segure quando eu cair. Nem sempre funciona, mas, pro seu azar, você mordeu a isca.
Quando falei sobre aquelas suas qualidades que só eu via, eu estava mentindo. Hora nenhuma eu vi você daquele jeito. Aliás, eu não vi você de jeito algum. Você foi só um corpo que abrigava o personagem que eu criei e preparei cuidadosamente pra me segurar. Quando eu disse que gostava de você apesar dos seus defeitos – os quais eu sempre fazia questão de ressaltar - estava mentindo. Eu sabia desde o começo que eles estavam lá, não iriam desaparecer e serviriam de pretexto pra justificar minha partida na hora que eu quisesse ir embora. Se em algum momento eu dei a entender que você poderia contar comigo, eu estava mentindo também. Todas as vezes que me ofereci como uma rocha pra você se apoiar, eu só queria que você não percebesse que na verdade estava me carregando. Lembra todos os estardalhaços que eu fazia quando você me magoava? Também eram mentira. Não era você que doía. Aquela era eu expurgando o desespero de estar pendurada no limbo do nada.
Eu nunca me importei com você porque nunca tive interesse. Eu fingia que te olhava, mas só buscava a mim mesma. Quando a dor da queda passou, levantei e fui embora sem olhar pra trás. Como se nada tivesse acontecido. E você ficou lá.
Entenda que não é maldade. É o meu egoísmo. Diante dele não me é permitido sentir nada além de mim. E eu sabia disso tudo desde o princípio, desde quando vi a casca de banana no caminho. Eu usei você. E não me arrependo.
Porque me arrepender seria me comprometer a não fazer mais. Não me comprometo. Vai acontecer de novo. E não pense que ter a consciência do eterno ciclo que vivo alivia a dor ou me dá algum tipo de controle. Antes não a tivesse. A consciência de mim só me esmaga mais ainda e piora a angústia da minha impotência. Antes eu nem soubesse o quanto fui egoísta com você. Andaria por aí tranquila e absolvida. Com cara de “não tenho culpa de não te amar mais.” Ingenuamente acreditando na pureza das minhas decisões.
Não vou pedir desculpas. Não espero ser perdoada. E, na verdade, pouco importa se você vai perdoar ou não. Só quero dizer que você estava certo. Eu sou egoísta. Morrerei egoísta. De coração e sem cinismo, eu desejo que você me esqueça. Não sofra por mim porque não vale a pena. Mas prometo que não vou te esquecer. Serei eterna e sinceramente grata por você ter estado lá. Obrigada.